Fome, de Tibor Moricz

Tente imaginar um mundo devastado por uma guerra ou catástrofe de proporções gigantescas. Um mundo onde não há mais ordem, governo, civilização. E principalmente, um mundo onde não há mais comida.

Acredite, esse mundo não é tão fácil de se imaginar quanto parece. E mesmo se você conseguir, vai ser difícil imaginar um mundo tão assustador ou chocante quanto o que Tibor Moricz imaginou. Na época em que li o livro, ainda não conhecia o Tibor pessoalmente. Agora que o conheço, posso dizer que fica bem mais fácil entender como ele imaginou coisas tão chocantes assim…:D

Fome, lançado em 2008 pela Tarja Editorial, é um fix-up, um conjunto de contos que podem ser lidos separadamente, mas que se relacionam durante a leitura do livro. Em cada um dos 15 contos apresentados, o autor nos mostra cenas diferentes de uma cidade devastada pela guerra e pela doença. Simplesmente não há mais alimentos disponíveis no mundo, e o ser humano passa então a ter que se virar como pode.

Esse “se virar como pode” significa que o ser humano deixa de se importar com relações familiares ou de amizade. O “próximo” passa a ser concorrente pelo alimento, ou na maioria dos casos, o próprio alimento. Em outras palavras, quando a fome aperta, vale tudo: papel, terra, insetos, e, claro, outras pessoas.

Cada um dos contos/capítulos do livro mostra um personagem diferente da cidade. Há o caçador, que sai diariamente em busca do alimento e é impulsionado pela adrenalina de matar outras pessoas. Há o erudito, que alimenta corpo e mente com o papel de grandes clássicos da literatura. Há a sedutora, que usa o que lhe resta de beleza para atrair os homens. Há o renitente, aquele que insiste em não comer carne humana, mesmo sabendo que não há outra saída. Há o demente, que não sabe mais o que é real e o que é ilusão. Há os que atacam em bando. Há os que se defendem em bando. E há os religiosos: os pregadores, os messias e os salvadores, que usam o temor dos homens em benefício próprio.

A descrição que o autor faz de cada um desses personagens é fantástica. Seus medos e sentimentos são expostos de maneira chocante e assustadora.

Conversando certa vez com o autor, ele me disse que a ideia era mesmo chocar os leitores e mostrar como a humanidade pode ser perversa. E pelo visto, o próprio autor ficou bem chocado com o produto de sua imaginação. Eu explico: ele conta que a ideia para escrever Fome veio a partir do conto O Caçador, o primeiro que aparece no livro e um dos melhores. Esse conto é muito forte, e deixou o autor tão impressionado a ponto dele sonhar com o que tinha escrito e na manhã seguinte pensar que ainda havia muita coisa a ser explorada dentro do mesmo tema.

Como disse, o livro é composto por 15 contos. Não vou fazer um resumo de cada um deles aqui, porque acho que realmente ia estragar a surpresa de quem for ler, mas eu posso mencionar os meus preferidos:

O Caçador: o conto é realmente chocante, talvez por ser o primeiro e já nos jogar nesse mundo maluco. A frieza do caçador é assustadora, e o final é surpreendente. Eu não esperava um livro tão forte e violento, e esse conto é uma boa mostra do que está por vir.

O Pregador: gosto do apelo religioso desse conto. O discurso do Pregador convence e mostra que o ser humano muitas vezes só escuta o que lhe interessa.

O Obsessivo: dá para imaginar um sujeito metódico e cheio de manias vivendo num mundo assim? Dá. Leia esse conto que você vai ver.

O Prisioneiro: medo e terror. É isso o que sente quem sabe que está perto da morte. O protagonista desse conto sabe que vai morrer logo, mas não sabe quando, nem como. Mas sabe que vai morrer. E ainda assim, apesar do medo, sente conforto ao crer em algo superior.

A Matilha: uma verdadeira guerra de gangues entre dois grupos de caçadores. Muito sangue e violência.

O Messias: no meio da sangrenta batalha entre dois grupos de caçadores, surge o Messias trazendo promessas de uma vida melhor. Acredita quem quer.

Fome é um livro muito bom, muito bem escrito, mas é um livro forte. E eu falo isso ciente de que essa era a ideia do autor. Assim como os protagonistas de cada conto, o leitor precisa ter um estômago resistente. Ao final da leitura, carne rasgada com os próprios dentes, sangue para matar a sede, nervos e músculos sendo devorados com apetite, passam a ser coisas normais.

Eu recomendo fortemente a leitura de Fome, e garanto que, se depois de ler, você ficar chocado, o autor vai ficar bem satisfeito.

O livro pode ser encontrado aqui.

6 comentários em “Fome, de Tibor Moricz

  1. Obrigado pela leitura e avaliação, Daniel. Mas senti falta das críticas. Ou não tem nada no livro de ruim?

    1. Oi Tibor, eu gosto do livro como um todo. Um ou outro conto não me chama tanto a atenção, mas não por serem ruins, apenas porque não funcionaram tanto comigo. Por isso, não critico o conteúdo. A única ressalva que faço, e isso eu esqueci de mencionar, é sobre a encadernação. Depois de duas vezes que li, e duas vezes que emprestei, o livro não tem nenhuma página sequer ainda presa. Todas caíram e se soltaram umas das outras, e olha que sou bem cuidadoso. Nesse ponto, a editora pisou na bola.

  2. Boa resenha, Daniel. Li o livro do Tibor logo que foi publicado e só me incomodou uma frase do prefácio, que anuncia que o texto é um ataque ao bom-mocismo da FC. Contudo, os eventos mostrados no livro não são inéditos no gênero e, para nossa desgraça como espécie, nem na história humana. Situações de fome intensa e canibalismo é uma tradição da FC e já aparecem desde o famoso “O relato de Arthur Gordon Pyn”, de Edgar Alan Poe.
    O texto com que “Fome” mais se familiariza é a novela “Estrada para o anoitecer” de Robert Silverberg, e também pelo mais recente “A estrada”, de Cormac McCarty. Ambos fazem uma referência transversal ao famigerado episódio real da Caravana Donner que, no século XIX, ficou retida na Sierra Nevada durante um inverno rigoroso.
    Mas tivemos episódios de canibalismo em outros lugares e épocas, como na China durante a revolução cultural (os relatos são controversos) e em acidentes como o da queda de um avião nos Andes, relatado em livro e filmes, sem esquecer o canibalismo ritual de civilizações nativo-americanas e africanas, e dos inúmeros casos de psicopatologia, como de Eddie Glen, Elisabeth Bathory, entre outros.
    A diferença é que o texto “Fome” não é realista e avança na fantasia e na discussão política, esbarrando aqui e ali na tradição latina do gênero, tendendo ao absurdismo, especialmente no conto do homem que devora livros, o melhor da coletânea na minha opinião.
    Ainda que nem isso seja de todo improvável. Durante a corrida do ouro americana, a fome entre os mineiros era tanta que eles cozinhavam e comiam até as próprias botinas, e não seria impossível terem acontecido casos de canibalismo. O filme de Charles Chaplin conta o episódio com algum humor, mas ele foi real.
    Até a obra modernista Macunaíma tem um importante personagem canibal. No versão filmada, uma piscina cheia de partes humanas ilustra o conceito.
    Fome está muito bem acompanhado nessa tradição antropofágica, seja ela simbólica ou não.

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