Hubble em Três Atos – Ato 1

Abaixo, a primeira parte do artigo Hubble em Três Atos, por Domingos S. L. Soares.

Primeiro ato: “universos-ilha” versus “galáxias comparáveis”

A hipótese dos universos-ilha surgiu em meados do século XVIII e o seu mais famoso defensor é o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804). A ideia é a de que as estrelas poderiam estar associadas, i.e., ligadas pela atração gravitacional mútua, em sistemas independentes da Via Láctea. E já haviam muitos candidatos a universos-ilha, especialmente as famosas nebulosas espirais. É claro que a comprovação desta hipótese dependia de um dado observacional fundamental, a distância até o universo-ilha. Quer dizer, se esta distância fosse muito maior que as dimensões da Via Láctea, então estaria demonstrado que os universos-ilha — as nebulosas — eram sistemas remotos e independentes.

A determinação de distância em astronomia sempre foi e sempre será um problema fundamental, cuja solução é necessária para a comprovação das mais diversas hipóteses e teorias. Não foi diferente aqui, e a discussão se arrastou por dezenas de anos devido à falta de conhecimento da distância até as nebulosas espirais. A situação começou a melhorar apenas no século XIX, quando em 1838 o matemático e astrônomo alemão Friedrich Wilhelm Bessel (1784–1846) mediu a primeira paralaxe anual de uma estrela — 61 Cygni, uma das mais próximas da Terra — obtendo assim pela primeira vez a distância precisa até uma estrela. Isto não resolveu por si só o problema das distâncias às nebulosas, mas constituiu-se no primeiro degrau de uma escada muito importante, a escada de distâncias, que eventualmente levou Hubble até aos píncaros cósmicos de então, as nebulosas espirais.

De degrau em degrau, Hubble chegou ao degrau das variáveis Cefeidas, que lhe permitiu a determinação das distâncias até três galáxias do Grupo Local: NGC 6822 (galáxia de Barnard, em 1925), M33 (galáxia do Triângulo, em 1926) e M31 (galáxia de Andrômeda, em 1929). O relato destas descobertas está em seu The Realm of the Nebulae, de 1936, nos capítulos IV (Distances of Nebulae) e VI (The Local Group). No segundo ato, discutiremos este assunto em mais detalhes.

Este, portanto, foi o ponto final do Grande Debate de que falamos acima.

Mas há um detalhe em tudo isso. Acompanhando a hipótese dos universos-ilha havia uma outra ideia, — um apêndice conceitual — denominada hipótese das galáxias comparáveis. Passemos a palavra ao próprio Hubble. À página 96 do Realm lemos:

(…) a teoria dos universos-ilha parecia estar estabelecida sem qualquer margem de dúvida.

A teoria tinha duas formas. O termo “universos-ilha” sugeria simplesmente que as nebulosas eram sistemas estelares independentes, espalhados pelo espaço intergaláctico. O termo “galáxias   comparáveis” tinha implícito o fato de as dimensões da nebulosa serem mais ou menos comparáveis com as de nossa própria galáxia.

Na raiz de toda esta polêmica estava Harlow Shapley, contemporâneo — e, podemos arriscar, desafeto de Hubble (cf. Edwin Hubble, Mariner of the Nebulae, de Gale Christianson e COSMOS:21out11). Pois bem, Shapley havia determinado o diâmetro da Via Láctea (o sistema galáctico, “galactic system”, como aparece no texto de Hubble) em 300.000 anos-luz, baseado na distribuição de seus aglomerados globulares. Se as dimensões das nebulosas fossem comparáveis, as distâncias implicadas, em virtude de suas dimensões aparentes no céu, seriam tão grandes que estrelas nova (um tipo de estrela extraordinariamente brilhante) que eram nelas observadas teriam que ter brilhos intrínsecos absurdamente maiores do que as novas observadas na Via Láctea. E isto não era facilmente assimilado pela comunidade astronômica contemporânea. Em determinado ponto chegou-se até a pensar — Realm, página 98 — que

(…) se as nebulosas fossem universos-ilha, o sistema galáctico seria um continente.

No entanto, o assunto foi logo resolvido após uma revisão da determinação do diâmetro da Via Láctea, que foi reduzido para a metade ou até um terço do valor original, e pela determinação do diâmetro da nebulosa espiral de Andrômeda, M31, através do mesmo método dos aglomerados globulares. M31 mostrou-se, de fato, comparável à Via Láctea. Os universos-ilha, portanto, como foi admitido na época, eram comparáveis ao nosso sistema galáctico. Novamente Hubble, página 99:

Não é impossível que nosso sistema galáctico, visto a partir de M31, cubra uma área do céu comparável à forma espiral que vemos a partir do nosso sistema.

É importante salientar que a questão das “galáxias comparáveis” era relevante então, quando as galáxias estavam justamente no processo de serem “descobertas”. Hoje, e muito graças ao trabalho posterior do próprio Hubble, na classificação morfológica das galáxias, sabemos que elas existem em tamanhos e formas variadas. Existem desde galáxias anãs — mil vezes menores que a Via Láctea — até gigantescas galáxias, nos centros de aglomerados de galáxias, cujos diâmetros são comparáveis à distância da Via Láctea a M31, cerca de 2.500.000 anos-luz.


continua amanhã…

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